Houve um tempo, entre os anos 50 e 70, que viajar de avião era sinônimo de conforto e bem-estar, com requintes como cascatas de camarões durante as refeições, champanhe à vontade e iguarias do mar do norte. A tripulação e os passageiros vestiam-se como se fossem a um baile de gala. Vivia-se uma época de luxo, ouro sobre azul. Atualmente, as companhias apostam em travessias mais baratas e incrivelmente mais insossas. Algumas aboliram até o lugar marcado, outras desistiram dos clássicos travesseirinhos: Por que, afinal de contas, os anos de ouro da aviação são coisa do passado?
Texto de Silvio Ferraz para a revista Época - Negócios
É verão. Meu pai chega no meio da tarde. Veste um terno de lã risca de giz. Acho estranho. Mais ainda quando minha mãe desce num "tailleur" e de chapéu na cabeça. É enterro, penso. Não é. Partem para Nova York num hidroavião da Panair e permanecerão a bordo por dois dias e meio, enfrentando três escalas até aterrissar no aeroporto de La Guardia, a 13 quilômetros de Manhattan. A cena ficará gravada em minha memória pelos 50 anos seguintes, eu, menino morador da Urca, plantada no pé do Pão de Açúcar, fascinado pelos Douglas DC3, os Curtiss Comander, os Scandia que decolam do Santos Dumont quase em frente à minha casa. Mais tarde subiriam os Avro turboélices, o Viscount inglês do presidente Juscelino Kubitschek. Uma festa nos ares. A era de ouro da aviação. Voar é chique, muito chique. E muito, muito caro.
Em 1939, a Pan Am cruza o Atlântico pela primeira vez, num vôo Nova York-Londres, levando, em seu hidroavião Boeing 314, vinte e dois passageiros que desembolsam US$ 675 por um assento - o equivalente hoje a US$ 5 mil. Mas, quem pode, paga sem chiar e recebe um tratamento cinco-estrelas. Não existe classe executiva. Da primeira fila, na primeira classe, à última, na turística, serve-se um democrático champanhe francês a todos os passageiros antes da decolagem, ou a primeira dose de uísque escocês, se assim o desejarem. Aeromoças sorridentes, com os cabelos numa banana, acendem as finas e longas piteiras de madames e cavalheiros. Depois da ceia suculenta, o comandante desfila em seu jaquetão azul-marinho com listas douradas nas ombreiras, indagando pelo conforto e antecipando despreocupadamente, quem sabe, uma pequena turbulência sobre os Açores. Refestelado no assento largo e fofo, distante quase 1 metro da poltrona da frente, o passageiro é, sem dúvida nenhuma, um rei.
Toque feminino:Em 1959, o jato 707 Clipper da Pan Am servia de cenário para reportagens de moda em revistas femininas |
A indústria da aviação cresce de forma vertiginosa. Com ela, multiplica-se o número de passageiros, aviões e rotas. A Pan Am já é o segundo logotipo mais conhecido em todo o mundo, pintado nas caudas dos seus Clipper, só perdendo para a Coca-Cola - a grande almôndega, como o logo é chamado nos aeroportos. Lá começa a glamourização da tripulação, quando o presidente da empresa troca os macacões de vôo dos pilotos e manda desenhar por grifes prestigiosas os uniformes das aeromoças. As rotas se multiplicam na cola da euforia deflagrada com uma grande vitória, a travessia do Pacífico em 1934, feita pelo China Clipper. Cinco anos depois da lendária viagem de São Francisco a caminho das Filipinas, num épico vôo de sete dias e quatro escalas, a indústria não pára. Os engenheiros da Loockheed projetam um dos mais elegantes modelos já surgidos até hoje: o Constellation. Com o perfil de um tubarão, três lemes na cauda, quatro motores, apelidado de Connie por pilotos e mecânicos, deslumbra a fina flor do high society. O playboy Jorginho Guinle, que voa sem parar, descreve-o como "um avião único, de formas curvas, voluptuosas como o corpo de uma mulher". Cada qual vê o que lhe parece. Mas a sua fama de quadrimotor não dura muito. "É o melhor trimotor do mundo", debocha a turma do meio aeronáutico, já que um dos motores freqüentemente se cansa de trabalhar. A Loockheed não se conforma: aperfeiçoa o Constellation e o transforma num Super Connie, 5 metros mais longo, motores mais potentes e capacidade para transportar 109 passageiros. É um sucesso.
Juscelino Kubitscheck: Em todo o mundo, a riqueza do requintado transporte marítimo migrava para os ares. |
O Super Constellation aterrissa no Brasil em meados dos anos 50 esbanjando luxo e charme. A Panair e a Varig, nascida 20 anos antes, são as donas dos ares. Bares a bordo, pequeno restaurante, carrinhos de bebidas, champanhes espocando. O sonho do barman do Plaza. Em todo o mundo, a riqueza do transporte marítimo começa a migrar para os ares. Os comandantes dos grandes navios reduzem inexoravelmente a marcha de seus motores e as orquestras de bordo começam a silenciar. É uma nova era. Em 1959, ao completar 30 anos, a Panair já contabiliza 5 mil travessias do Atlântico e voa para mais de 70 cidades, de Beirute a Santiago, com uma malha de cobertura de 110 mil quilômetros.
Chegam os anos 60. O zumbido das hélices é substituído pelo ronco dos reatores. O avião a jato é uma realidade irreversível. Na Base Aérea do Galeão, de onde partem e chegam os vôos internacionais, subo as escadas do DC8 da Panair para minha primeira imersão em Paris. Tenho 20 anos e encaro, maravilhado, as 14 horas de luxo e beleza que me separam da Europa. A classe econômica mais parece a primeira de amanhã. Champanhe Moët & Chandon, uísque, gim, martínis e sucos. Toalhas e guardanapos grandes de linho, talheres de prata. Vinhos franceses Bordeaux e Bourgogne, entrada e dois pratos à escolha do passageiro. Queijos, sobremesas, café, licores. Paulo Francis disse uma vez a Sérgio Augusto que a maioria dos jornalistas é jeca. Acham vinho rosé o fino e só comeram patê aos 25 anos. Comigo, ele quase acerta. Degusto meu primeiro patê francês a 10 mil metros de altitude, nas asas da Panair.
Refestelado no assento largo, distante um metro da poltrona da frente, o passageiro era rei. Imagina o serviço de bordo... |
A empresa, a propósito, é um lar para os brasileiros. Seus escritórios em Londres, Paris ou Istambul são muito mais acolhedores que embaixadas e consulados. E, certamente, mais eficientes. "Perdeu o passaporte? Melhor falar com o gerente da Panair", é o conselho ouvido com freqüência. É claro que ele não emite um novo, mas intervém no caso com o cônsul-geral. Doença grave? O gerente seleciona duas poltronas na primeira classe e as isola com uma cortina para que ninguém incomode o doente. E não se cobra um níquel por isso. Numa época em que os jornalistas mandam despachos para as sedes pelo teletipo da Western Union, o que é caro, as matérias dominicais mais extensas são gentilmente levadas pelos comandantes. Coisas da Panair. A empresa é uma extensão do Brasil bossa-nova que nascia aos acordes de violões dissonantes. Logo recebe dois elegantes e silenciosos jatos franceses, com turbinas na cauda, os Caravelle - que desfilarão em rasante sobre as ondas de Copacabana. Mais dois anos se passam na tumultuada cena brasileira. Chegam os militares em 1964, implantam sua ditadura e logo apagam as luzes da Panair. Alegam catastrófico estado financeiro, cassam as linhas nacionais e internacionais da empresa, fecham lojas e escritórios, cedem os aviões para a concorrente. Acabou-se o que era doce, quem voou regalou-se.
Mas, mesmo no auge da crise, nenhum passageiro fica em terra. Voam nos horários previstos, para os destinos estampados nos bilhetes, Paris ou Frankfurt, levados pelas asas da nova estrela: Varig, Varig, Varig, inesquecível jingle criado pelo então publicitário José Bonifácio de Oliveira, o Boni. Voar de Varig é voar de Boeing 707, o maior avião a jato da época. Fundada em 1927 com o solitário hidroavião Atlântico, com capacidade para nove passageiros, a Varig era um sucesso - transportara 652 corajosos passageiros e voara 210 horas já em seu primeiro ano. Seus fundadores tinham percebido que o padrão Panair dava certo, tocava o coração dos brasileiros. Trataram de copiá-lo e aperfeiçoá-lo, criando o "padrão Varig", ou "Varig, forma elegante de voar". Deu certo. Ao completar 75 anos, já tinha transportado 210 milhões de passageiros.
Quem não voou pela Varig? Todo mundo voou. Do papa João Paulo II à peituda Jayne Mansfield, de Louis Armstrong a Pelé. De Juscelino Kubitschek, que dormia a bordo de pijamas listados, a John Kennedy. De Brizola a Ernesto Geisel. De Jango a Nixon, passando por Elis Regina e Salvador Dalí. Até Vinicius de Moraes, morto de medo, ironizava, mas voava: "O bicho é mais pesado que o ar e o motor é a explosão. Não pode dar certo". A essas alturas, a classe econômica já não é mais aquela. As poltronas encolheram, estão pertinho da fila da frente. Mas o serviço de bordo continua impecável. Na primeira classe, o embaixador Hugo Gouthier, por exemplo, regressando de Paris, vai ao banheiro. Tem pressa. Meio adormecido, puxa o cinto e faz pipi calças abaixo. Enrola-se num cobertor (aquela mantinha que milhões de brasileiros levaram para casa, discretamente) e fica macambúzio. O chefe de cabine tranqüiliza-o. No problem. O pessoal de terra da Varig manda um portador à casa do embaixador pegar um par novo. Enquanto os passageiros descem, as calças sobem. Coisas da Varig.
O economista gaúcho Sergio Prates foi um dos maiores responsáveis pela mordomia que tanto contribuía para o sucesso da Varig - mas, com modéstia, afirma que o criador do "jeito Varig de voar" foi seu mítico presidente Ruben Berta. No Super Constellation, que levava 23 horas de Porto Alegre a Nova York, o desafio era distrair os passageiros como se eles estivessem jantando no elegante Tour d'Argent parisiense. Os modelos de Sergio eram a Air France e a Swissair. Saiu à procura de um chef famoso. Achou, em Lisboa, o russo Leon Berezanski. Foram montadas cozinhas no Rio, em Porto Alegre, São Paulo, Recife e Belém. "Para os vinhos, vali-me dos préstimos de nosso gerente em Nova York, um sommelier de mão-cheia, Hans Reuch (atual vice-presidente da cadeia Marriott)", diz Prates. "Ele acompanhava as safras e, na hora da colheita, partia para Bordeaux e a Borgonha, onde comprava os tintos, e para as margens do Reno, onde comprava os brancos." Os vinhos saíam a bons preços, já que a Varig comprava toda a safra do escolhido, e lá os deixava estocados. O resultado desse esforço foi premiado em 1979: a Varig foi eleita a empresa com o melhor serviço de bordo do mundo.
A classe turística, nos idos dos 80, já se distancia anos-luz da primeira - decorrência do nascimento da executiva. Se na frente bebe-se à vontade vinho francês, lá atrás é Forestier mesmo e ponto final. Uma vantagem é que não há overbooking. E, às vezes, ainda pinta um upgrade. Viajei quatro vezes na primeira. Duas por simpatia, duas porque não havia lugar na turística. Participei de verdadeiras paradas gastronômicas. Caviar Beluga às colheradas, com garrafa de vodca mergulhada em um bloco de gelo. Cascatas de camarões enormes de Santa Catarina. Dizem que tudo o que é bom dura pouco. No caso da Varig, o dito não se aplicou. Durou 75 anos. Hoje, os tempos são de cumulus nimbus. Sai caviar, entra barrinha de cereal.
Bom exemplo: As principais companhias de aviação do mundo inspiraram-se nos serviços criados pela Pan Am nos anos 50, a primeira a oferecer lanches e refeições quentes |
A Gol comprou a Varig. E a TAM vai disputando, na rabeira, as linhas internacionais. Vamos e venhamos: nos anos dourados, pouca gente viajava, e esses poucos pagavam muito. Hoje, viaja-se muito mais e paga-se muito menos. A liturgia do vôo também foi para o brejo. Voa-se de bermudas, sandálias Havaianas e até camiseta "mamãe, eu sou forte". As poltronas são exíguas - obesos não entram. Nos vôos longos, os pés incham e finge-se ir ao banheiro só para se exercitar. Copos e talheres de plástico são debitados ao terrorismo.
Como um hotel: No Boeing Stratocruiser da Pan Am havia espaço para toucador feminino, beliche para crianças e, no porão, vasta sala para drinques. |
Os executivos das empresas explicam que, com os preços do combustível nas alturas, tornam-se impossíveis os luxos do passado. As empresas americanas, de modo geral, vão mal das pernas - ou das asas. Perderam nada menos de US$ 10 bilhões em 2005. Para compensar as perdas, perdem também a compostura. A Northwest cobra US$ 1 pelo refrigerante. Ela e a American Airlines deixaram de servir porções de salgadinhos, ainda que miseráveis. Um assento na saída de emergência, com mais espaço para as pernas, custa entre US$ 24 e US$ 99 a mais na United. A Air Canada foi ao extremo: aboliu o lugar marcado, agora é na base do ônibus. A maioria das empresas sepultou a distribuição das bolsinhas com kits de toalete e, cúmulo do absurdo, baniu os travesseirinhos. A Air Canada contorna a questão cobrando US$ 2 de quem quiser um. "Economizamos US$ 600 mil anuais deixando de distribuir travesseiros", diz Tim Wagner, porta-voz da AMR Corporation American - a maior de todas -, holding da American Airlines, com 697 aviões, e da Eagle, com 306. Seus executivos raspam o pires. No primeiro trimestre deste ano conseguiram o lucro de US$ 81 milhões, embora a cotação das ações tenha caído.
Nos balanços, nuvens negras para as companhias aéreas, não há dúvida. Para a indústria aeronáutica, o sol brilha. O gigantesco Airbus 380 para até 800 passageiros em dois andares, nova sensação, já recebeu 156 encomendas, ao custo de US$ 290 milhões cada um. E o passageiro, nesse imbróglio, como é que fica? Ele, que um dia já foi rei, ainda vai viajar em pé. Vai mesmo. A patota da Airbus elabora outro projeto: vender lugares em pé na classe econômica. As poltronas serão substituídas por apoios verticais, com cintos de segurança. O aparato ocupará 63 centímetros, diante dos 77,5 das atuais poltronas. Legalmente, nada os impede, desde que a segurança esteja garantida. Mas quem precisa de segurança nas galés? É só pão e água. Chibatadas, não, pelo amor de Deus.
O lema da principal companhia brasileira era claro: "Varig, forma elegante de voar". |
Bibliografia pesquisada e citada:
Ferraz, Silvio. "Do caviar à barra de cereal". Época Negócios. São Paulo: Editora Globo, 2007, maio.
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