Vamos continuar publicando em nosso blog, reportagens históricas da Revista Flap, de Carlos Spagat, uma referência essencial sobre histórico das empresas aéreas do Brasil e do exterior que representaram excelência em serviços. Nesta postagem vamos publicar uma reportagem de autoria de Gianfranco Betting, também uma referência na reportagem de aviação sobre a empresa aérea britânica, BRITISH CALEDONIAN. Esta empresa voou por muitos anos no Aeroporto de Viracopos/Campinas e no Galeão/Rio de Janeiro. Vale a pena conhecer a empresa que antecedeu a nossa conhecida British airways que voa com elegância britânica até os dias atuais...
"Há pouco mais de 60 anos começaram as ligações regulares entre Brasil e Reino Unido. O embarque é imediato na história desta saudosa empresa britânica e de suas antecessoras nos serviços para o Brasil.A revista Flap Internacional presta uma justahomenagem à British Caledonian." Por Gianfranco Beting.
BSAA - a pioneira
Sexta-feira, 15 de março de 1946, meio- dia. Uma manhã fria e úmida, típica do final de inverno britânico na pista de grama da antiga Base Aérea da Royal Air Force – Croydon. Lar dos Spitfire e Hurricane do Comando de Caça da RAF durante a recém - terminada Segunda Guerra Mundial, Croydon fervia de atividade. Os últimos preparativos para uma fascinante jornada foram concluí- dos. Fecharam-se as portas de um bombardeiro Avro Lancaster, convertido para uso civil e conhecido como Lancastrian. A bordo, cinco tripulantes e 13 passageiros. Matriculada G-AGWG e batizada Star Light, a aeronave abriria uma nova rota e uma nova companhia aérea: seria o primeiro vôo regular da British South American Airways - BSAA.
Este é o Avro York, utilizado junto com os Lancastrian nos serviços transatlânticos da BSAA.
Três horas e meia depois de partir, o Lancastrian pousava em Lisboa, primeira escala da viagem inaugural entre Reino Unido e Brasil. A seguir, mais oito horas de vôo até Bathurst (hoje Banjul, Gâmbia), última escala antes de enfrentar as nove horas de vôo sobre o Atlântico em direção a Natal, primeira escala em solo brasileiro. De Natal ao Rio, foram mais seis horas de vôo, pousando no Aeroporto do Galeão por volta das 17h00, aproximadamente 38 horas após a partida de Londres. Depois, a aeronave prosseguiu para Montevidéu e Buenos Aires, antes de iniciar o longo regresso até Londres. No vôo de volta, porém, a escala em Madri substituiu o pouso em Lisboa. Meses depois de inaugurada, em 23 de setembro de 1946 a escala em Bathurst foi substituída por Dacar, no Senegal.
A bordo dos Lancastrian da BSAA: muito barulho, pouco conforto.
Esse vôo histórico já havia sido precedido, no primeiro dia de 1946, por um vôo de provas, que havia decolado do Aeródromo de Heathrow com destino Buenos Aires e escalas em Lisboa, Natal, Rio de Janeiro e Montevidéu. Mas o vôo de 15 de março de 1946 teria tanta importância histórica quanto o pioneiro de 1º de janeiro: foi esta a primeira ligação regular entre Brasil e Inglaterra. O vôo foi um sucesso, embora fosse extremamente cansa- tivo. Os Lancastrian, como bombardeiros adaptados, deixavam a desejar em termos de conforto. Os níveis de ruído eram intensos dentro da cabine. E, por não ser pressurizado, tinha de voar baixo, em meio às nuvens, chacoalhando bastante. Para completar, o padrão de revestimento térmico deixava a desejar: a aeronave virava um forno quando em solo no Brasil ou na África e uma geladeira quando em altitude sobre os Andes ou sobre a Inglaterra. De qualquer modo, o caminho aéreo entre Reino Unido e Brasil estava aberto.
Logo depois da inauguração da rota, deu-se a primeira mudança de cunho político no mercado britânico, o que traria grandes mudanças nas operações entre Inglaterra e Brasil nas décadas seguintes. Em 1º de agosto de 1946, todas as companhias aéreas britânicas foram nacionalizadas e a BSAA adotou a designação oficial de British South American Airways Corporation - BSAAC.
Ao final daquele ano, a BSAAC possuía seis Avro Lancastrian e 16 Avro York. A frota de Lancastrian também foi aumentada em quatro unidades já em 1947. A frota seria ainda maior se a empresa não tivesse sofrido uma série de acidentes fatais. Sem aviões para cumprir os serviços, a BSAAC acabou sendo fusionada à malha da British Overseas Airways Corporation - BOAC, em 30 de julho de 1949. Em pouco mais de três anos, a pioneira empresa aérea britânica no Atlântico Sul operou um total de 36 aeronaves diferentes, perdendo nada menos que dez em acidentes fatais. Um triste recorde.
Anúncio da BSAA nos anos 1940 mostra o itinerário e o Lancastrian como aeronave principal na rota.
BOAC - herdeira do legado
Inicialmente, BSAAC e BOAC operaram em paralelo, com aeronaves nas próprias cores e tripulações com distintos uniformes. Ao final de 1949, o vôo entre a Inglaterra e o Brasil passou a usar o código IATA de duas letras da BOAC (BA). O serviço era o BA103, que partia de Londres às sextas-feiras às 10h05 com escalas em Lisboa, Dacar e Natal, até pousar no Rio de Janeiro às 15h25 dos sábados. A aeronave parava então para descanso da tripulação. Às 8h00 dos domingos, o vôo 103 prosseguia para São Paulo (Congonhas) e de lá para Montevidéu e Buenos Aires, onde finalmente pousava as 18h35. Em 16 de março de 1950, a BOAC mudou o equipamento usado nos vôos para o Brasil. Entraram em serviço os Canadair Argonaut, que na verdade eram Douglas DC- 4 construídos sob licença no Canadá e equipados com motores Rolls Royce Merlin. Com 40 assentos, passaram a servir a América do Sul três vezes por semana.
As linhas clássicas do Lancaster, em sua versão de transporte de passgeiros: o Avro Lancastian.
Os vôos mudaram de número e passaram a ser operados como BA351(rumo sul) e BA352 (rumo norte). Os planos da BOAC para as rotas do Atlântico Sul eram ainda mais ambiciosos. A empresa planejava colocar nas rotas, já em meados de 1953, o primeiro jato comercial em operação, o de Havilland Comet. Um vôo de provas foi realizado em 13 de setembro de 1953, nas asas de um Comet 1 (prefixo G-ALYT), que decolou de Londres às 17h29 e fez escalas em Lisboa, Dacar e Recife antes de chegar ao Rio às 11h35 do dia 14 de setembro, completando a jornada em 21 horas e 6 minutos. Antes de pousar no Galeão, o Comet fez uma série de vôos rasantes sobre a Cidade Maravilhosa. Recebido por uma imensa multidão, o G-ALYT foi o primeiro jato comercial a pousar no Brasil. Sua entrada em serviço cortaria o tempo de vôo na rota pela metade.
Detalhe do espartano interior de um Lancastrian.
No entanto, uma série de desastres com os Comet 1, entre 1953 e 1954, significou o cancelamento desses planos. Sem aeronaves para servir todas as suas rotas intercontinentais, a BOAC decidiu suspender os serviços para a América do Sul em abril de 1954. Até porque a companhia não vinha obtendo bons retornos financeiros nessas rotas. A BOAC só voltaria ao Brasil no dia 26 de janeiro de 1960, mas o fez em grande estilo. Nessa data, o Comet 4 de prefixo G-APDO reinaugurou o serviço entre Londres e Santiago do Chile, com escalas em Madri, Dacar, Rio, Montevidéu e Buenos Aires. Os Comet 4 levavam apenas 69 passageiros, sendo que 24 eram acomodados na primeira classe e os restantes 45 lugares eram reservados aos passageiros da classe turística. Voando a Mach 0,73 (893 quilômetros/ hora), a jornada completa, da Inglaterra ao Chile, levava mais de 40 horas, sendo 26 horas de vôo. Com a inauguração do Aeroporto de Viracopos em Campinas, Estado de São Paulo, os vôos da BOAC passaram a fazer escalas em VCP ao invés de Congonhas.
BUA - VC10 na rota austral
A BOAC não voaria por muito tempo para Campinas. O governo britânico decidiu realinhar mais uma vez sua política de divisão de mercados de longo curso. Foi acertado que a BOAC cederia as rotas sul-americanas, onde amargava prejuízos, para outra empresa aérea britânica. O último vôo para o Brasil decolou no dia 1º de outubro de 1964, retornando à capital britânica no dia seguinte.
A sucessora da BOAC nas rotas para o Brasil foi a British United Airways - BUA. Dirigida pelo energético Freddie Laker, a empresa não tardaria em realizar seu primeiro vôo regular para a América do Sul. Em 12 de outubro de 1964, decolou o primeiro VC-10 (127 assentos) da BUA em direção ao Brasil, Argentina e Chile, ainda em vôo de familiarização com a nova rota. No final daquele mês, um segundo vôo foi feito.
Finalmente, em outubro de 1964 a BUA começou a operar regularmente para o Brasil, a princípio com dois serviços semanais.
No lugar dos Comet da BOAC, a BUA utilizava os Vickers VC-10, com capacidade para 129 passageiros em duas classes.
Acomodações de primeira classe num Comet 4 da BOAC, primeira aeronave a jato a cruzar o Atlântico Sul regularmente.
As qualidades do VC-10 logo se mostraram, atraindo a preferência do público pelo conforto, silêncio a bordo e velocidade incomparáveis.
O Argonaut nada mais era do que um DC-4 fabricado sob licença da Douglas pela Canadair. Os motores eram Rolls Royce Merlin.
De fato, entre os concorrentes na primeira geração de quadrimotores a jato (Douglas DC-8, Boeing 707 e Convair 990), o VC-10 era, sem sombra de dívida, o mais confortável. Seus quatro motores Conway, embora muito ruidosos para quem estivesse no solo, eram bastante silenciosos para os passageiros, em função de sua disposição na cauda. Com uma ótima aeronave, a BUA começou a obter ótimos resultados. Em razão disso, em 1965, a empresa tentou adicionar um terceiro vôo semanal entre Inglaterra e Brasil. O governo brasileiro, contudo, negou o pedido. A Varig, companhia aérea brasileira designada para representar o Brasil, naquele momento não tinha aeronaves disponíveis para operar reciprocamente uma terceira freqüência semanal para o Reino Unido.
Interior de um Argonaut mostra a disposição 2+2 das poltronas: padrão superior de conforto.
A BUA então passou a voar esta terceira freqüência diretamente para Buenos Aires, com escala em Freetown, Sierra Leone, sem poder sobrevoar o território brasileiro.
Os vôos da BUA também inovaram em termos de trajeto. Depois de deixar a Inglaterra, faziam escalas alternadamente em Lisboa ou Madri, de onde seguiam para Las Palmas, antes de chegar ao Rio de Janeiro.
Outra mudança trazida pelas operações da BUA foi o aeroporto usado nas operações em Londres: pela primeira vez, aeronaves britânicas vindas do Brasil pousavam em Gatwick, aeroporto ao sul da capital britânica. Gatwick e Viracopos tinham em comum, além dos serviços da BUA, um grande inconveniente: ficavam distantes das cidades que serviam.
Folheto promocional do Comet 4, primeira aeronave a jato a ligar o Brasil e o Reino Unido.
Em ambas as pontas, a BUA adotou táticas criativas para solucionar este problema. Na Inglaterra, colocava à disposição dos passageiros transporte gratuito para o Aeroporto de Heathrow ou para a região central de Londres.
Detalhe: para os passageiros de primeira classe, o trajeto Gatwick/Heathrow era feito em enormes helicópteros Sikorsky S-61.
O serviço Airlink unia Gatwick a Heathrow com aeronaves S-61.
No Brasil, a BUA arrendava os Dart Herald da Sadia para transportar gratuitamente os passageiros entre Congonhas e Viracopos.
BUA e Caledonian: voando juntas
Voando sobre o Reino Unido, a visão majestosa da elegância do Vickers VC-10.
Não tardaria muito para, por mais uma vez, o governo britânico mudar de idéia em relação à distribuição geopolítica das companhias aéreas designadas para rotas internacionais.
Passageiros chegando de uma viagem à América do Sul desembarcam do VC-10 G-ASIX.
No final dos anos 1960, uma idéia começou a tomar forma nos gabinetes londrinos: o estabelecimento de um regime de duopólio, com a racionalização de serviços e criação de apenas duas empresas aéreas de bandeira. Downing Street achou por bem fundir quatro das maiores companhias aéreas britânicas e criar duas empresas de peso: de um lado, a British European Airways e a BOAC juntariam forças, fusão só concluída em 1974, dando origem à British Airways. No outro canto do ringue, ficariam a Caledonian Airways e a BUA. Juntas, essas duas empresas privadas operaram com a designação Caledonian/BUA por algum tempo, até que a marca mais tradicional ficou: a empresa foi rebatizada British Caledonian em 1970.
O VC-10 e o BAC 1-11, dois produtos britânicos, dividem as atenções no salão de Farnborough.
Na cauda das aeronaves, agora brilhava a belíssima imagem do leão rampante, simbolizando o orgulho patriótico da Escócia, país de origem do dono da empresa, Sir Adam Thomson. A Escócia, originalmente, era chamada pelos romanos de Caledônia, donde saiu o nome da companhia aérea. Veio daí também a tradição de batizar as aeronaves com nomes de regiões, rios, lagos e filhos famosos das Highlands. As cores principais, curiosamente, permaneceram as mesmas para as três empresas que voaram entre o Reino Unido e o Brasil: azul e amarelo, em diferentes matizes, foram utilizados pela BOAC, depois pela BUA e finalmente pela British Caledonian, ou BCal para os íntimos.
As aeronaves usadas na rota seguiram sendo as mesmas por alguns anos, mudando apenas a pintura e os uniformes. A BCal usava em seus uniformes simpáticos tartans, os xadrezes tradicionalíssimos dos clans escoceses. A Caledonian, ao contrário da BUA, havia optado pelo Boeing 707 para sua frota de longo curso. Em 1973, com a crise do petróleo, os quatro motores Conway do VC-10 passaram a representar um fardo que nenhum operador conseguia carregar.
O Boeing 707 mostra em sua fuselagem a designação adotada logo após a fusão da BUA com a Caledonian.
Com consumo de combustível muito maior que o Boeing 707, não tardou muito para a companhia decidir pela aposentadoria de seus VC-10. O Boeing 707 tornou-se o único modelo em operação nos vôos para o Brasil a partir de 1973. Os 707 da BCal eram configurados com 147 assentos, sendo 24 de primeira classe. Os serviços intercontinentais com Boeing 707 mostraram-se muito mais lucrativos do que aqueles operados com os VC-10. A BCal mudou também os trajetos entre o Brasil e a Inglaterra.
Boeing 707 - Cargo da British Caledonian.
Os vôos faziam escalas em Lisboa ou Madri, alternadamente, e a partir de agosto de 1971 passaram a pousar em Casablanca, Marrocos, ao invés de Las Palmas.
Mas logo o Boeing 707 da BCal cederia seu posto para a grande estrela da frota: o McDonnell Douglas DC-10. Quando a Varig colocou os seus primeiros DC-10-30 em serviço ativo, a partir de 1974, a BCal viu-se em clara desvantagem competitiva ante a empresa brasileira. Essa situação permaneceu até 1977, quando a companhia começou a escalar seus DC-10-30 nas rotas para o Brasil. Inicialmente, os DC-10 da companhia estavam configurados com 30 assentos na primeira classe e 235 na econômica. Depois, com o advento da classe executiva, no final dos anos 1970, a configuração passou para 18 lugares na primeira, 35 na executiva e 178 na econômica.
Cena típica dos anos 1970 em Viracopos: partida no começo da tarde de um 707 da BCal rumo ao Reino Unido.
As rotas para a América do Sul foram operadas até 1980 com uma combinação de Boeing 707 e DC-10. Até esse ano, os vôos que partiam de Londres às segundas-feiras eram diurnos no sentido sul e cumpridos com equipamento 707: o vôo BR 667 saía de Gatwick às 9h45, chegava a Recife às 15h10 e ao Galeão às 18h45. Às terças, o vôo BR665 partia de Gatwick às 21h30, pousava no Aeroporto de Guararapes às 2h55, no Galeão às 6h30 e em Viracopos às 8h35. De lá, o DC-10 prosseguia sem escalas para Santiago do Chile, onde pousava ao meio-dia.
Flying Tartans: no DNA da Caledonian, o orgulho de suas origens escocesas.
O terceiro vôo semanal era feito todas as quintas-feiras. O BR661 partia de Gatwick às 19h20, pousava em Madri à 0h30 das sextas-feiras e no Galeão às 6h10. Prosseguia para Viracopos, onde pousava às 8h15.
De lá, partia uma hora depois com destino a Buenos Aires, onde pousava às 12h00. Os passageiros do BR661 com destino a São Paulo podiam optar por desembarcar no Rio e fazer conexão no vôo Transbrasil QD311, operado por Boeing 727-100, que decolava do Galeão às 8h15, chegando a Congonhas às 9h00 das sextas-feiras.
A quarta freqüência semanal (BR663) decolava de Gatwick às 19h20 aos sábados, pousava em Lisboa às 23h50 e no Galeão às 6h10 do domingo. Prosseguia para Viracopos, onde pousava às 8h15. De lá, partia uma hora depois com destino a Buenos Aires, onde pousava às 11h50. Finalmente, cumpria a última perna para Santiago do Chile, onde aterrissava às 13h45 do domingo.
Os vôos de regresso para Londres eram os seguintes: às segundas-feiras, o BR668 (Boeing 707) partia do Galeão às 22h15 e seguia sem escalas para Gatwick, onde pousava às 13h25 nas terças-feiras. O vôo BR666 partia às quartas-feiras de Viracopos às 19h40, do Galeão às 21h30, de Recife à 1h05, chegando a Lisboa às 12h20 das quintas-feiras e a Gatwick às 15h35.
Boeing 707 no Aeroporto de Gatwick.
Nas sextas-feiras, o vôo era o BR662: saídas de Viracopos às 21h20, do Galeão às 23h15, chegando a Madri às 13h45 dos sábados e a Gatwick às 15h35. Finalmente, aos domingos operava o BR664: partia do Galeão às 23h15 e de lá voava sem escalas até Gatwick, onde pousava às 14h05 das segundas-feiras.
Essa foi uma grande época em termos de serviço de bordo. A BCal esmerava-se e criou o padrão de atendimento Serviço de Bordo Leão Dourado. A grande estrela nas refeições era a culinária britânica. O que, diga-se de passagem, não emocionava muito os passageiros que não fossem súditos de Sua Majestade.
Preparando refeições nas cozinhas próximas a Gatwick.
Os detratores da culinária britânica costumam dizer que o menor livro do mundo é intitulado “Delícias da Cozinha Inglesa”. Seja como for, a culinária nos jatos da British Caledonian recebia muitas críticas. Afinal, convenhamos que Kidney Pie e costeletas de cordeiro com menta não são exatamente uma unanimidade mundial. Prevaleceu o bom senso e, em meados dos anos 1970, pratos da culinária francesa passaram a ser opções nos cardápios, que continuaram a ter a maioria de sua inspiração na culinária britânica. Gosto não se discute, mas, de toda forma, não há dúvida de que o serviço de refeições da BCal tinha muita classe. Sem exageros, pode-se dizer que é um sonho, se comparado aos padrões mais espartanos de hoje. Os vinhos, por exemplo, eram absolutamente soberbos. Um cardápio de um vôo em 1972 apresentava como tintos o bordô Chateau Leoville Puyferre 1962 e o borgonha Gevrey Chambertin 1966. O branco era “apenas” um Puligny Montrachet 1966. Para se ter uma idéia, se nos dias de hoje tomarmos vinhos comparáveis a esses como base e somarmos os preços de uma garrafa de cada, o valor total obtido será quase o dobro de uma passagem de classe econômica, ida e volta, entre Brasil e Inglaterra.
A BCal tinha múltiplas opções de pratos quentes na primeira classe. Uma refeição completa levava horas.
Desnecessário dizer que a seleção de uísques e pure malts oferecida a bordo era impecável. A classe não estava apenas nos copos de cristal, mas também nos pratos de porcelana inglesa. Havia ao menos três opções de entrada e quatro de pratos principais. As refeições começavam claro, pelo caviar, um item de riguer nessa época.
Os pratos não vinham prontos. Ao contrário, eram montados na frente dos passageiros.
O surgimento da classe executiva mudou a configuração interna dos aviões.
Para fechar a refeição, a empresa oferecia uma lista de licores extensa e até mesmo cigarros e charutos – por conta da casa! Naquela época, não havia entretenimento individual, salvo meia dúzia de canais de música “stereo” que podiam ser escutados em desconfortáveis fones de ouvido de borracha. Na classe econômica, o privilégio era pago. O ponto alto da programação de entretenimento, em ambas as classes, era a projeção de filmes de longa metragem, dois por vôo, exibidos em telas instaladas nas divisórias das cabines. Uma profusão de revistas e jornais eram, de fato, as maiores opções de entretenimento a bordo. Os assentos eram enormes e muito confortáveis para a época, embora não se convertessem em camas quando reclinados. Ao final de cada vôo, o purser (comissário-chefe) trazia como lembrança uma taça de cristal escocês Stuart, personalizada. Se voar naquela época já não era para muitos, de primeira classe então era mesmo para muito poucos.
Poltrona da primeira classe do DC-10 da British Caledonian.
Os anos 1980 chegaram. A era do DC-10 estava no auge: os três vôos semanais eram operados exclusivamente com o equipamento.
Minutos antes de mais uma travessia do Atlântico Sul: o DC-10 aguarda o embarque de passageiros em Viracopos.
Houve mudanças nas rotas. Salvador foi incluída no itinerário e operada paralelamente a Recife, mas a escala na Bahia não durou muito. A Veneza Brasileira voltou a fazer parte exclusivamente das rotas em 1º de janeiro de 1982 e ficou na malha da companhia inglesa até o fim de suas operações em nosso país.
Chegada do vôo BR663 numa linda manhã de domingo em julho de 1984.
Os vôos do Brasil para a Inglaterra partiam sempre às quartas (BR666), sextas (BR662) e domingos (BR664). Decolavam de Viracopos às 18h35, do Galeão às 21h35 e na madrugada do dia seguinte, à 1h05, deixavam para trás Guararapes, pousando em Gatwick às 12h45. Os vôos dos domingos eram ligeiramente diferentes, pois não passavam pelo Recife. Após decolar do Galeão, voavam non-stop para Madri, onde chegavam às 12h10 da segunda-feira. Após uma breve escala, chegavam a Londres às 14h10.
Diferenciação e agilidade no check-in eram alguns dos atributos da Fisrt Class da BCal.
No rumo sul, os vôos partiam de Gatwick todas as terças, quintas e sábados às 20h00. Os vôos às terças (BR663) e sábados (BR665) pousavam em Recife às 2h05, no Galeão às 5h40 e em Viracopos às 7h45. De lá prosseguiam para o cone sul. Os vôos das quintas-feiras (BR661) faziam escala em Madri, pousando na capital espanhola às 23h00 e decolando às 23h59. De lá, prosseguiam sem escalas para o Galeão, onde pousavam às 6h00 da manhã das sextas-feiras. Da Cidade Maravilhosa seguiam para Viracopos, onde aterrissavam às 8h05.
Em 1982, com a eclosão da Guerra das Malvinas (ou Falklands), os serviços para Buenos Aires e Santiago foram bruscamente interrompidos. Os DC-10 da BCal chegavam de manhã cedinho a Viracopos e não mais prosseguiam até as capitais da Argentina e do Chile.
Só voltavam a ver serviço ativo horas depois, quando decolavam para o Galeão e Recife, antes de chegar a Gatwick. Essa situação política desfavorável diminuiu a lucratividade da rota. A BCal então começou a pressionar o governo britânico para uma redistribuição de serviços intercontinentais, reclamando maior presença nas rotas para os países do Golfo Pérsico e Ásia, regiões menos instáveis política e economicamente do que a África e América do Sul, até então seus mercados de longo curso mais relevantes. Em 1984, o governo decidiu-se a favor da British Caledonian: a empresa ganhou as rotas para a Arábia Saudita. Em troca, teve de ceder os serviços da América Latina para a British Airways.
29 de março de 1985. DC10-30: Decola o último voo de Viracopos da British Caledonian. Para nunca mais voltar!
Essa mudança somente seria efetivada em 29 de março de 1985, quando partiu pela última vez de solo brasileiro uma aeronave com o leão dourado na cauda. O melhor resumo dessa saga talvez seja o próprio título do anúncio de despedida publicado pela BCal na época do último vôo: “Saudade. Nós aprendemos essa palavra aqui”. Indeed, querida e inesquecível BCal. Saudade e so long, dear Golden Lion!
Abaixo, publico páginas de um folder do site http://www.british-caledonian.com/, que é um site em homenagem a esta grande empresa aérea que vale a pena conhecer a fundo.
Bibliografia:
Revista Flap Internacional. São Paulo: Editora Spagat, 2007.
No filme do Roberto Carlos" 300 km por hora" o ator Raul Cortês sobe num desses aviões rumo à Europa. Nostalgia muito gostosa.
ResponderExcluirhttps://youtu.be/5VBNW2ZOd0c